A multa de Bolsonaro – entenda o caso que demonstra violações do direito de defesa em decisões ambientais

A multa de Bolsonaro: Em março de 2012, Jair Bolsonaro, então deputado federal (PP-RJ), foi autuado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) sob alegação de pesca amadora em local proibido, em área pertencente à Estação Ecológica de Tamoios, unidade de conservação federal de proteção integral, em Angra dos Reis (RJ). A autuação deu origem ao processo administrativo sancionador de nº 02022.000630/2012-01, após lavratura do Auto de Infração 363409/D.

 Em matéria ambiental, a pesca irregular é disciplinada como infração ambiental, conforme o artigo 35 do Decreto nº 6.514/2008:

Art. 35.  Pescar em período ou local no qual a pesca seja proibida:

Multa de R$ 700,00 (setecentos reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), com acréscimo de R$ 20,00 (vinte reais), por quilo ou fração do produto da pescaria, ou por espécime quando se tratar de produto de pesca para uso ornamental. 

O enquadramento legal do Auto de Infração Ambiental lavrado em relação a Jair Bolsonaro, constou os seguintes dispositivos legais da Lei de Crimes Ambientais (Lei n° 9.605/98):

Art. 40. Causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização:

Pena – reclusão, de um a cinco anos.

Art. 69. Obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais:

Pena – detenção, de um a três anos, e multa.

Ainda, a fiscalização apontou que as atividades praticadas por Bolsonaro feriram a proteção legal conferida à estação ecológica, nos termos do Decreto nº 6.514/08:

Art. 90.  Realizar quaisquer atividades ou adotar conduta em desacordo com os objetivos da unidade de conservação, o seu plano de manejo e regulamentos:

Multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000,00 (dez mil reais). 

Art. 91. Causar dano à unidade de conservação:                      

Multa de R$ 200,00 (duzentos reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais). 

Aplicação de Multa

No caso em questão, a multa aplicada foi de R$10.000,00 (dez mil reais), valor enquadrado na métrica legal. A ausência de pagamento da multa, somada aos trâmites processuais até decisões de primeira e segunda instância administrativa, levaram Jair Bolsonaro a ter o nome inscrito no cadastro de pessoas físicas e jurídicas com débitos com a União, o conhecido Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN), além de estar sujeito às cobranças administrativa e judicial do débito consolidado.

Multa de Bolsonaro: Direito de defesa

O caso Bolsonaro obteve repercussão nacional, tanto em primeiro momento, pela exposição midiática da atividade de fiscalização, como ao final de 2018, após parecer da Advocacia Geral da União. A Procuradoria-Federal Especializada (PFE) do IBAMA recomendou a suspensão da inclusão de Jair Bolsonaro no cadastro restritivo, vez que entendeu que as decisões do órgão administrativo não analisaram os “argumentos das peças defensivas [de Bolsonaro] e não fundamentaram os respectivos indeferimentos”.

Em resumo, tanto a defesa quanto o recurso administrativo apresentados por Jair Bolsonaro foram indeferidos – isto é, negados. Entretanto, a autarquia ambiental não justificou as decisões, o que caracteriza violação do princípio do contraditório e ampla defesa, conhecidas garantias constitucionais.

Reconhecendo a impossibilidade momentânea da cobrança da multa ambiental aplicada, a Procuradoria autárquica recomendou o retorno do processo administrativo para a fase de instrução, para que as decisões administrativas (independente do teor) fossem emitidas de maneira fundamentada.

A multa de Bolsonaro: Mas o que é uma decisão fundamentada?

Esqueçamos um pouco Jair Bolsonaro… E pensemos em qualquer um dos mais de 16 mil autos de infração lavrados anualmente pelo IBAMA. O processo administrativo sancionador nesta esfera é, indiscutivelmente, unânime em sua forma e ritos, quaisquer que sejam as partes – deputados ou produtores.

A sequência processual é marcada por prazos pontuais e uma série de manifestações de todos os envolvidos na atividade fiscalizadora, e permite dois momentos cruciais para o exercício dos direitos da parte autuada: defesa e recurso administrativos.

As decisões administrativas emitidas em resposta às argumentações trazidas pelas partes integrantes do processo, não são discricionárias. As autoridades ambientais, instituídas da função administrativa, devem justificar as decisões emitidas com base na previsão legal, estabelecendo relação direta entre esta e os argumentos apontados pela parte autuada.

A Constituição Federal de 1988 traz, ao caput do artigo 37, princípios que devem guiar a Administração Pública na realização de todos os seus atos:  legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A atividades fiscalizadoras, bem como a apuração das infrações ambientais através da instauração de processos administrativos, devem ser exercidas nestes limites legais.

A emissão de decisões administrativas sem a análise dos argumentos ou documentação apresentadas em defesas e recursos, é prática que viola tanto as garantias constitucionais de contraditório e ampla defesa, além de contrariar o regramento próprio ao processo administrativo no âmbito federal.

Proteção dos direitos dos administrados

A Lei nº 9.784/99 estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. Ao artigo 50, o regramento reafirma a necessidade de motivação dos atos públicos:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;

III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;

IV – dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;

VI – decorram de reexame de ofício;

VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;

VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.

§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

§ 2º Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados.

§ 3º A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.

Em demandas ambientais, não são poucas as queixas do setor produtivo quanto à falta de fundamentação das decisões. Os momentos processuais de apresentação de defesa e recurso administrativos não podem ser tratados como mero cumprimento formal, mas como oportunidades efetivas de defesa, em que os administrados possuem a garantia de que seus argumentos e documentação probatória serão analisados e considerados nas deliberações.

Em decisão posterior, a Superintendência do IBAMA reconheceu, ainda, a incidência de prescrição no processo administrativo de Jair Bolsonaro, tornando a multa inexequível. Neste caso, Jair Bolsonaro é a externalização de uma falha processual grave na gestão dos processos administrativos, detalhada inclusive em auditoria da Controladoria-Geral da União. Embora o caso tenha sido explorado midiaticamente com nuances de pretenso favorecimento obtido pela posição política ocupada pelo então deputado, o caso apenas externa a realidade de milhares de produtores rurais autuados no Brasil.

E quando o autuado é João?

Frequentemente, o socorro para as arbitrariedades em decisões administrativas ambientais, vem pela via judicial. O exaurimento da fase administrativa, mesmo repleta de vícios e nulidades, rende prejuízos de várias ordens, aos administrados: a inscrição em dívida ativa e a sujeição a ações executivas fiscais, rendem aos autuados o frequente risco de dano financeiro. Especialmente no agronegócio, quando o autuado é produtor rural, a manutenção nos cadastros restritivos impede a obtenção de crédito junto às instituições financeiras, impactando negativamente na própria atividade econômica.

Longe de tecer comentários ao mérito dos argumentos trazidos na defesa de Jair Bolsonaro, ao qual nossa equipe não tem acesso, nosso objetivo é externar, uma vez mais, as violações aos direitos de defesa reiteradamente cometidas pelas autarquias ambientais no Brasil. A lamentável moralização do debate ambiental é outro fator que contribui para que o imaginário social consolide o produtor rural com pendências ambientais como réu a ser eternamente punido.

Quanto o autuado é João, a exposição midiática não existe. Os prejuízos, porém, são os mesmos, se não maiores do que os causados ao Presidente. Paira sobre João a atualização constante dos débitos e a sensação, comprovada pela prática administrativa, de que as decisões já estão tomadas, independente dos seus argumentos.

A retomada da motivação dos atos administrativos é medida urgente, tanto para garantia do devido processo legal, como para efetividade da própria atividade administrativa. O avanço da questão ambiental não virá enquanto persistirem as violações do direito de defesa de quem quer que seja, Bolsonaro ou João.

Leia mais em:

Limites da fiscalização ambiental

Prescrição em processo administrativo ambiental: Saiba se é o seu caso e o que fazer

TAGS: DECISÃO FUNDAMENTADA, DIREITO DE DEFESA, JAIR BOLSONARO, MULTAS AMBIENTAIS, PRESCRIÇÃO AMBIENTAL

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